E este foi o meu texto
Nobre
sentir nas águas do rio
Vi-o passar, mui nobre senhor do meu
coração, dono deste meu querer, futuro el-rei deste país.
Nem me vê, seus olhos assentam noutras,
mais formosas, mais nobres, mais prendadas.
Sou uma simples lavadeira, nem aia, nem
senhora, nem dama, nem donzela da corte que o rodeia.
Meus braços estão crestados pelo Sol, despojados
de adornos, minhas mãos calejadas de tanto lençol esfregar nas pedras do rio.
Do rio que nos conciliou, onde o vi
nobre senhor a banhos, onde a lavadeira tendia os lençóis de outros nobres.
Enrubesci, estremeci, quase bradei,
pois moça donzela da aldeia não vislumbra nobres senhores, muito menos em
trajes menores. Ai que agastamento se apoderou de mim, desta vã aldeã, mui
nobre senhor.
Não tenho dotes, não tenho terras, não
tenho títulos de nobre, sou aldeã, sou lavadeira, lavo no rio as vestes desses
nobres da sua corte, príncipe mui nobre deste país.
Na pena não sei pegar, as artes das
letras não as sei usar, minhas mãos servem para lavar, para amassar, para
cavar.
As vénias da corte não as sei fazer, as
danças não as sei dançar, as roupas das damas não as sei usar, os pós de cor
não os sei pôr, as melenas não as sei prender, sou simples aldeã senhor, não à
altura dos seus nobres títulos, dos seus nobres olhos, dos seus nobres afectos,
do seu nobre âmago.
A terra, a água entranhou-se nestas
mãos outrora aveludadas, já ossudas, calejadas, não são mais delicadas.
Mas meu coração, meu nobre senhor, esse
é puro, esse é delicado, esse o venera acima de todas as graças.
Meu pensar está infindavelmente em si,
el-rei do meu sentir, mas que faço eu, desgraçada aldeã, entregando o meu
coração a um nobre, futuro el-rei deste país, até meu corpo lhe concederia em
troca do seu bem-querer.
Mas a desgraça é tamanha, é a desgraça
passada de tantas donzelas que por um querer, por um breve sentir se deixam
cair nos nobres braços de alguém, que as ultraja, que as devasta.
Não, o meu mui nobre senhor não vive
nesse covil, é nobre no coração, é nobre no clamor, não ludibria donzelas, não
as cobiça, meu mui nobre senhor difere da gente desse covil.
Ai que desgraça, este meu cogitar, este
meu sentir não me deixa repousar, a frieza do leito não ajuda, invernos
tamanhos sem fim, a geada cobre a aldeia, a geada cobre tudo, a geada cobre a
água do rio onde ao raiar do sol minhas mãos mergulham para mais vestes lavar e
eu sem repousar neste breu sem fim.
Este sentir que nunca vai vingar, tolhe-me
os dias, tolhe-me o viver, tolhe-me os tempos vindouros.
Se para mim olhasses senhor meu, se em
mim ficasses, se em mim repousasses teus braços cansados de nas armas pegar,
após o domingo de caçada na Tapada Real, ao que vislumbro do meu rio.
Teus galgos abrem caminho, teus nobres
companheiros te acompanham nas selas desses lusitanos cavalos, gamos correm na
vossa frente, trovão ressoa, pólvora inunda os ares frescos da tapada,
algazarra de homens e cães, júbilos nobres que não alcanço.
Vejo-te passar, senhor, na montada luzente
de sempre, fadiga nos olhos, nos braços, na alma, que não me contemplam, que
não me enxergam, que não me sentem.
Esta lavadeira aqui jaz, no rio que
lava as vestes desses fidalgos, seu sentir é só seu, sua exasperação, seu
desmérito idem, pesarosa lavadeira que na sua cruzada não tem fortuna, não tem redenção,
só infortúnio, que a sua valiosa pólvora me trespasse, nestes modos não quero
existir, que tua montada me espezinhe, que por fim teus olhos me atentem nas
águas que nos uniram e que desta donzela por fim se enamorem e aldeã consorte
do futuro el-rei desta pátria me tornem.
O que acham? Escrevo-vos de outra época ou não?
Beijinhos
Cláudia
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